PROCESSO N.º 950/19.0JAPRT.P1 Tribunal da Relação do Porto

Data
14 de outubro de 2020

Descritores
Inquérito
Omissão de pronúncia
Irregularidade
Crime de roubo
Elementos do tipo
Crime de detenção de arma proibida
Autoria
Pena de prisão
Permanência na habitação
Conhecimentos fortuitos
Reproduções mecânicas
Colisão de direitos
Tentativa

Sumário
I – A omissão de pronúncia do Magistrado do Ministério Público titular do inquérito, relativamente a pedido de consulta do processo fora da secretaria, deduzido por um dos arguidos, nos termos dos art.ºs 118º, nº 2, e 123º do CPP constitui mera irregularidade processual, a ser tempestivamente arguida perante o respetivo superior hierárquico.

Além de não ter sido arguida em tempo perante a autoridade judiciária competente, o eventual reconhecimento da existência de tal vício nunca poderia implicar a determinação oficiosa da sua reparação, ao abrigo do art.º 123º, nº 2, do CPP, porquanto a decisão omitida a proferir deveria ter o mesmo efeito prático que o que foi alcançado com a omissão registada, de negação da consulta do processo fora da secretaria, pois a pluralidade de arguidos e demais sujeitos processuais, bem como a sobreposição de prazos a que todos estavam obrigados, fazia com que fosse essa a única decisão que asseguraria a todos eles as “garantias necessárias e adequadas para um eficaz exercício do direito de defesa, interpretado à luz do princípio da proporcionalidade”.

II – Tendo a prática do crime de roubo ficado dependente do contributo de um dos agentes, pese embora este não tenha empunhado qualquer das armas de fogo para tal usadas pelos demais, foi o mesmo, nos termos do art.º 26º do CP, não só coautor do crime de roubo, como também do crime de detenção de arma proibida, porquanto, num e noutro tipo-de-ilícito, representou e quis o domínio dos factos, que exerceu juntamente com os demais agentes, em função de uma repartição de tarefas entre todos acordada, não se limitando por isso à prestação de um mero auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso, para que assim pudesse ser considerado mero cúmplice, à luz do art.º 27º do CP, e beneficiar da atenuação especial da pena aí prevista.

III – Apesar da sua natureza de ultima ratio, a execução da pena de prisão de curta duração (de apenas 1 ano) em estabelecimento prisional do Estado, em detrimento da sua execução em regime de permanência na habitação, deverá erigir-se como único meio positivo, necessário e adequado, não só à salvaguarda ou proteção dos bens jurídicos violados, mas também à prevenção da reincidência, naqueles casos em que resulta documentado no processo, não só uma recalcitrante reiteração da prática do mesmo tipo de crime, como de outros de diferente natureza, e um excessivo recurso a penas não detentivas ou não institucionais, que espelham um acentuado rasto de inoperância do sistema de justiça e como efeito dessa inoperância uma clara redução do valor das normas penais concretamente violadas, senão mesmo a sua inutilização prática aos olhos da comunidade.

IV – Para que o conhecimento fortuito obtido através das escutas telefónicas realizadas num determinado processo possa ser usado num outro, em curso ou a instaurar, além de ter de se basear em decisão que respeitou os pressupostos legais de determinação de tais escutas, o novo destino que se lhes pretenda dar deverá ter por base uma autónoma decisão do juiz de instrução criminal, e ter no horizonte da sua determinação a investigação em inquérito de crimes do catálogo legal, relativamente a pessoa identificada como alvo, à luz do art.º 187º, nº 4, do CPP, por ser suspeito da prática daqueles crimes e por, em relação à sua investigação, tais escutas se mostrarem imprescindíveis, por sem elas, a prova ser impossível ou muito difícil de obter, não sendo, porém, necessário que tal aproveitamento seja novamente decidido pelo tribunal de julgamento, para o resultado de tais escutas poder ser usado como meio de prova válido na decisão do mérito da causa.

V – O art.º 167º, nº 1, do CPP, ao referir-se às reproduções mecânicas, fotográficas, cinematográficas e outras, e à possibilidade de valerem como prova se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, deve ser entendido como visando uma ilicitude típica aferida à luz do Código Penal, no âmbito da tutela do direito fundamental à privacidade ou por referência a tipos de ilícito que visam a proteção dos direitos da personalidade e não a uma ilicitude especial penal ou contraordenacional resultante da omissão das notificações ou dos pedidos de autorização na instalação e uso de sistemas de videovigilância a que se referem os art.ºs 27º e 28º da Lei de Proteção de Dados.

VI – A ilicitude ou não da imagem obtida deve ser o resultado da ponderação sobre a colisão do respetivo direito fundamental com outros direitos ou interesses constitucionalmente tutelados, tendo-se para tal em conta o princípio da fragmentariedade do direito penal, revelado na exigência típica de a imagem ser obtida “contra a vontade” da pessoa, constante da norma do art.º 199º, nº 2, do CP, que prevê o crime de gravações e fotografias ilícitas, assim como a atipicidade, justificação, ou não, da obtenção da imagem à luz do art.º 79º, nº 2, do Código Civil, nas circunstâncias aí previstas, de afirmação da desnecessidade do consentimento da pessoa visada, ou ainda nos casos de consentimento tácito, tendo-se ademais presente o entendimento perfilhado pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a admissibilidade de recolha de imagens, através de câmaras de vigilância, nomeadamente em locais razoavelmente expectáveis, lugares públicos ou locais regularmente ocupados por quem faz uso de tais sistemas, no sentido de que tal recolha não constitui violação da Convenção, nomeadamente do seu art.º 8º, nº 1, desde que as imagens não sejam objeto de divulgação pública ou utilizadas para outros fins que não sejam a vigilância e a segurança dos locais onde se encontram.

VII – A tentativa pressupõe a realização de atos de execução de um crime que não chega a atingir o patamar da consumação. É o que resulta dos art.º 22º do CP, ao dizer que “há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.

VIII – O crime de roubo é um crime material ou de resultado, porquanto a sua consumação se dá com uma “alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta”, mais precisamente com a subtração ou com a entrega da coisa móvel ou animal alheios, que é o resultado típico da conduta do agente, e só quando se estabelece entre esse resultado e a conduta um nexo de causalidade adequada, em termos de se poder afirmar que esse resultado foi produzido por aquela ação, então é que poderemos considerar preenchido, na sua plenitude o tipo de ilícito e assim dizer que o mesmo foi consumado.

IX – A subtração, enquanto elemento objetivo do tipo tem como acento tónico, ou elemento característico fundamental, a “eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa”, podendo assim dizer-se que, para existir consumação do crime não é necessário haver uma transferência física da coisa para o domino fáctico de outrem, isto é, do agente do crime ou de outra pessoa, pois é admissível, nalguns casos, que essa transferência possa ser apenas simbólica, precisamente por não se traduzir numa transferência, deslocação ou sequer apreensão física da coisa;

X – Por isso também a subtração não é confundível com a ablatio (termo latino que tem o significado de ablação, mas que no seu sentido estrito queria significar que ao desapossamento da coisa do seu legítimo detentor corresponderia uma nova posse da coisa pelo agente do crime, ficando esta “em paz e sossego na mão do ladrão”), ou com a mera mera contretactio (quer dizer, com o mero contacto ou toque do agente na coisa), nem com a apprehentio da coisa (a apreensão da coisa pelo agente com as suas próprias mãos), nem com a amotio da coisa (a deslocação da coisa pelo agente), nem com a illatio da coisa (a conservação da coisa em lugar seguro).

XI – Por outro lado, a circunstância de a “intenção de apropriação”, referida no art.º 210º, nº 1, do CP, “não ter de se concretizar numa efetiva apropriação”, faz com que se possa afirmar que o roubo é um crime de consumação antecipada, e de intenção ou de resultado cortado, na medida em que o tipo legal, para além do dolo do tipo, isto é do conhecimento e vontade de subtrair ou constranger a que lhe seja entregue coisa móvel ou animal alheios, sabendo e querendo para tal usar de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo para a integridade física, ou pô-la na impossibilidade de resistir, exige ainda a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo, sendo esse resultado precisamente a apropriação, bastando-se para a consumação típica do crime de roubo que o gente atue apenas com essa ilegítima intenção.

XII – No plano subjetivo, enquanto que ao dolo da subtração se tem de seguir a consumação da subtração, na intenção de apropriação basta que o agente atue com a mera intenção da sua realização, sem que a apropriação se concretize.

XIII – A efetiva apropriação releva apenas, enquanto “consumação material”, como fronteira à possibilidade da extensão da desistência prevista no art.º 24º, nº 1, parte final, ou seja, quando não obstante a consumação (formal, porque verificado o preenchimento de todos os elementos do tipo-de-ilícito) o agente voluntariamente atue para impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo, impedindo assim, nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, a “realização completa do conteúdo do ilícito tido em vista pelo legislador”.

XIV – No caso dos autos, pese embora os arguidos hajam sido intercetados pelos agentes da Polícia Judiciária, depois de terem abandonado a dependência bancária, levando consigo o dinheiro aí obtido, que conseguiram através da ameaça dos respetivos funcionários com armas de fogo, e já depois de se terem afastado do local no veículo automóvel para tal usado, vindo a ser depois intercetados e detidos após terem realizado sem sucesso manobras de contra vigilância, uma tal situação não permite falar em tentativa, inacabada ou acabada (existe tentativa inacabada quando o agente não criou ainda todas as condições indispensáveis à consumação do crime, e a segunda quando o agente criou todas as condições da realização típica, a qual só não virá a concretizar-se efetivamente se o mesmo agente, de um modo ativo vier a impedir que tal realização ou consumação do crime aconteça), porquanto o crime de roubo, aquando da interceção e detenção, já se encontrava consumado. Apenas se poderia aventar a possibilidade de poder ter havido uma desistência posterior à consumação formal do crime, que obstasse à consumação material do mesmo, nos termos supra referidos, por aplicação da extensão prevista no art.º 24º, nº 1, parte final, do CP, que no caso também não aconteceu.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Fonte: https://www.dgsi.pt




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