PROCESSO N.º 924/19.1PBLRA.C1 Tribunal da Relação de Coimbra

Data
18 de maio de 2022

Descritores
Violência doméstica
Bem jurídico protegido
Estrutura jurídica
Perseguição
Concurso aparente de crimes

Sumário
I – Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.

II – O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc – é aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade.

III – Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

IV – Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa.

V – Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.

VI – O legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica.

VII – Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma.

VIII – A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de violência doméstica resultará do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação.

IX – O crime de violência doméstica pode entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afectação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto).

X – Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica.

Fonte: https://www.dgsi.pt




O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados disponibiliza a presente newsletter. Esta compilação não pretende ser exaustiva e não prescinde a consulta das versões oficiais destes e de outros textos legais.