PROCESSO N.º 904/16.9T8BRR.L1-4 Tribunal da Relação de Lisboa
Data
15 de dezembro de 2020
Descritores
Acidente de trabalho
Infração das regras de segurança
Empregador
Culpa
Nexo de causalidade
Sumário
I – Em casos como o presente, onde se pondera uma situação de possível cedência ilícita de trabalhadores, para além do recurso aos métodos utilizados para descortinar a subordinação jurídica no âmbito de qualificação contratual, é também de ponderar o circunstancialismo que envolve a dita contratação e a sua concreta execução.
II – Assim, para além de se atentar se a empresa dita prestadora de serviços, embora real, se limita a pôr em funcionamento a sua organização em termos de ceder mão a outrem à margem da lei, importa ainda aquilatar se não existe justificação técnica em termos de autonomia do serviço contratado; se não se verifica o exercício dos poderes patronais ou fraccionamento do poder de direcção entre a beneficiária e a prestadora do serviço; se ocorre mistura de trabalhadores; se a cedência é onerosa e se os trabalhos são prestados pelos mesmos trabalhadores, nos mesmos moldes e com carácter permanente.
III – Encontrando-se a cedência ocasional de trabalhadores dependente dos requisitos de ordem formal e material previstos nos artigos 289.º e 290.º do Código do Trabalho, no caso subjudice, sempre seria de considerar ilícita a cedência do sinistrado à 3.ª ré, já que se não demonstra que as rés se encontrem coligadas, em relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo ou que sejam detentoras de organizativas comuns, para além de que se mostra excedido o prazo de um ano para a cedência e se não se revela que o trabalhador tenha dado o seu acordo por escrito.
IV – Pese embora as 2.ª e 3.ª rés tenham celebrado, entre si, contratos de prestação de serviço, por via dos quais (segundo elas), o trabalhador sinistrado desempenhou funções (de limpeza e de manutenção) na unidade fabril da 3.ª ré, tendo o mesmo ao longo de vários anos desempenhado tais funções, sempre nas instalações da 3.ª ré, com os instrumentos de trabalho fornecidos por esta, em articulação com os seus trabalhadores, segundo as instruções e determinações da mesma ré (não dependentes, na generalidade, de condicionantes técnicas da actividade industrial em questão), e sem qualquer intervenção da 2.ª ré na concreta modelação contratual, à luz do que o legislador define como poder de direcção (art.º 97.º do Código do Trabalho), conclui-se que era a 3.ª ré que exercia o núcleo essencial do poder de direcção relativamente ao sinistrado (“faculdade de determinar as regras, de carácter prevalentemente técnico-organizativo, que o trabalhador deve observar no cumprimento da prestação ou, mais precisamente, o meio pelo qual o empresário dá uma destinação concreta à energia do trabalho (física e intelectual) que o trabalhador se obrigou a pôr e manter à disposição da entidade patronal (…)”, não se enquadrando, assim, a presente situação, no âmbito dos referidos contratos de prestação de serviços, mas sim, na figura da cedência ocasional de trabalhadores, que, no caso, como se viu, é ilícita.
V – Tratando-se de cedência de ocasional de trabalhador, nos termos do art.º 291.º do Código do Trabalho, “o trabalhador está sujeito ao regime de trabalho aplicável ao cessionário no que respeita ao modo, local, duração de trabalho, suspensão do contrato de trabalho, segurança e saúde no trabalho e acesso a equipamentos sociais”; devendo o cessionário “informar o cedente e o trabalhador cedido sobre os riscos para a segurança e saúde inerentes ao posto de trabalho a que este é afecto” (nºs 1 e 2).
VI – Tais obrigações compreendem-se à luz do preceituado no art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa, por via do qual “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito (…), c) À prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde”, e traduzem-se no direito fundamental do trabalhador à disponibilização de condições de segurança e saúde no trabalho.
VII – Tendo o trabalhado sinistrado sido vítima de acidente de trabalho mortal (soterramento em semente de colza), quando procedia à limpeza do silo de dia pertencente à 3.ª ré, é aplicável o disposto no art.º 87.º do “Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais”, aprovado pela Portaria 53/71, de 3 de Fevereiro, alterada pela Portaria 702/80, de 22 de Setembro, onde se dispõe que:
“1. Os materiais secos a granel devem ser, quando possível, armazenados em silos que permitam a sua descarga pelo fundo.
2.Os silos devem ser construídos de materiais resistentes ao fogo, cobertos e munidos de sistema de ventilação eficaz.
3. As operações de manutenção devem efetuar-se com toda a segurança para os trabalhadores.
4. O operário que penetre num silo deve dispor de cinto de segurança preso a cabo com folga mínima e solidamente amarrado a um ponto fixo e ser assistido, durante toda a operação, por outro operário colocado no exterior. Quando necessário, deve estar provido de máscara ou outro equipamento com adução de ar. Deve ser impedida a entrada nos silos durante a sua alimentação e descarga, ou quando não tenham sido tomadas precauções para prevenir o recomeço intempestivo destas operações”.
VIII – No presente caso, para além de se mostrar violada a norma na parte referente ao uso e cinto de segurança, visto existir risco de queda em altura, não foi também observada pela 3.ª ré a assistência devida ao trabalhador durante a operação de limpeza, pois enquanto o sinistrado procedia à limpeza do silo, quando o cereal começou a retornar em grande quantidade para o seu interior, não se encontrava no exterior nenhum outro trabalhador da ré para dar o alerta, contactar (via rádio ou outro meio) os trabalhadores da ré que estavam na sala de comando e estes fazerem parar circuito da fábrica com excesso de produto.
IX – E tão pouco se mostra observada a última parte da referida prescrição, uma vez que, tendo a ré o domínio do facto sobre os equipamentos fabris em questão (nada se tendo apurado no sentido de existir alguma anomalia nos mesmos que escapasse ao seu conhecimento, controlo ou capacidade de intervenção), não impediu a mesma a entrada do trabalhador sinistrado no silo de dia – pelo contrário disse-lhe que o fizesse – sem que (antes) tivesse tomado precauções para prevenir o recomeço intempestivo das operações de descarga.
X – Com base no referido enquadramento, é de considerar, face ao modo como o acidente se verificou, aos procedimentos de segurança a que a 3.ª Ré estava vinculada, devia ter observado, se encontrava em condições de observar e que não observou, que o acidente que vitimou o sinistrado se não ficou a dever “a circunstâncias estranhas ao modelo de perigo não conhecidas do agente ou para ele imprevisíveis, não tendo a realização do modelo de perigo sido precipitadas por circunstâncias que o não integrava”, nada resultando também da factualidade apurada ou das regas da experiência comum, que nos permita afirmar que o acidente em causa, ainda que observadas tivessem sido as sobreditas regras da de segurança, mesmo assim se teria verificado.
XI – Conclui-se, deste modo, ter sido a concreta violação das apontadas regras de segurança por parte da 3.ª ré, que constituiu causa adequada do acidente em questão, verificando-se o nexo de causalidade entra violação das ditas regras e o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado.
(Pela Relatora)
Fonte: https://www.dgsi.pt