PROCESSO N.º 8/19.2F1PDL.S1 Supremo Tribunal de Justiça

Data
03 de dezembro de 2020

Descritores
Recurso per saltum
Patrocínio oficioso
Defensor
Substituição
Interrupção do prazo de recurso
Direito ao recurso
Constitucionalidade
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Processo equitativo
Tráfico de estupefacientes
Tráfico de menor gravidade
Qualificação jurídica
Vendedor
Princípio da presunção de inocência
Medida concreta da pena
Pena de prisão
Pena de substituição
Pena suspensa

Sumário

I – O problema a resolver será o de saber se, havendo pedido de dispensa pelo defensor e posterior substituição com nomeação de outro defensor oficioso pela OA, o decurso dos prazos para apresentação de atos processuais, no caso para interposição de recurso, são ou não interrompidos, reiniciando-se com a nomeação de novo defensor.

II – A jurisprudência deste STJ tem sido, ao longo do tempo, constante, considerando que os prazos não são interrompidos quando se procede à substituição de defensor oficioso; posição que não tem sido contestada na jurisprudência do TC.

III – O TC não considerou inconstitucional a não interrupção do decurso dos prazos para interposição de recurso durante a pendência do pedido de dispensa do defensor junto da OA. Porém, o facto de não ser considerado inconstitucional, isto é, o facto de o TC entender que não estão violadas normas inconstitucionais, não significa que possa ser a interpretação mais correta. O Tribunal apenas considerou que esta interpretação não é contra a Constituição, sem curar de averiguar se seria (ou não) a melhor solução a dar ao problema.

IV – O TEDH tem sucessivamente condenado o Estado português por violação do art. 6.º, n.ºs 1 e 3, al. c), da CEDH quando, perante uma ausência de apoio judiciário efetivo, o arguido se vê privado de uma “defesa concreta e efetiva”.

V – Num processo como o processo penal, em que assumem especial importância não só as garantias de defesa do arguido, mas também um eficaz acesso ao direito, impõe-se que o arguido não veja limitadas as possibilidades de exercício do direito ao recurso, apenas porque o defensor oficioso foi sendo sucessivamente substituído, sem que nenhum deles assegure a continuidade da defesa, ou sem que, apesar da lei, se mantenha a exercer a sua função nos subsequentes atos até ser nomeado novo defensor.

VI – No caso dos autos, o arguido, entre as sucessivas nomeações, acabou por ficar abandonado à sua sorte sem que qualquer defensor oficioso realizasse o que a lei determinava — assegurar os subsequentes atos do processo até à nomeação de novo defensor (com a consequente responsabilidade disciplinar que possa existir) —, pelo que se entende que não foi assegurada uma efetiva defesa do arguido, que foram reduzidas de maneira significativa as garantias de defesa do arguido, tal como tem entendido o TEDH e, por conseguinte, admite-se o recurso interposto.

VII – Não estando dado como provado a que tipo de venda se destinava, a conclusão de que o arguido “não se dedicava ao retalho” parece constituir um argumento conclusivo sem qualquer arrimo nos factos provados; porém, dos factos provados resulta apenas que a droga se destinava a venda, sem mais, pelo que, não havendo matéria de facto provada que permita retirar aquela conclusão, não poderá ser tida em conta em desfavor do arguido.

VIII – Do texto da decisão recorrida não emerge qualquer dúvida quanto ao destino da droga recebida pelo arguido — dos factos provados resulta apenas que se destinava a venda, sem que se aflore se se tratava (ou não) de venda a retalho, e sem que do texto da decisão recorrida se vislumbre qualquer dúvida quanto ao facto de a droga se destinar a venda.

IX – Tendo ficado provado que o arguido destinava o haxixe à venda, mas não constando da decisão factos provados quanto à venda a retalho, ao consumidor final, tanto mais que o arguido não chegou a ter posse direta sobre parte do produto recebido, poderemos dizer que o argumento apresentado como não se destinando o haxixe a venda a retalho, e daí retirando a consequência de os factos não poderem ser subsumidos ao tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, constitui uma violação do princípio da presunção de inocência? O entendimento plasmado na fundamentação de facto e de direito como o de o arguido não se dedicar à venda a retalho constitui uma violação daquele princípio da presunção de inocência, por o juízo de certeza enunciado quanto a não se destinar a venda a retalho não se apresentar fundado.

X – Será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento, avaliando não só a quantidade como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a atividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o “posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina”.

XI – Consideramos estar perante um crime de tráfico de menor gravidade porquanto: – não resulta da matéria de facto provada a utilização de meios sofisticados para a aquisição do produto estupefaciente, e muito menos a utilização de quaisquer meios para os atos de venda (uma vez que nem sequer existem factos provados de venda); na verdade, a droga foi adquirida (nem se sabe se gratuitamente ou onerosamente) por um meio simples – a receção de uma encomenda postal, e nada sofisticado; – não resulta da matéria de facto provada o modo como o arguido terá conseguido adquirir a droga, nem se percebe sequer se adquiria deste modo há muito ou pouco tempo; – o produto adquirido, e na parte em que o está provado, tem reduzida qualidade (cerca de 78 gr tinham apenas um grau de pureza de 18,5%), sendo que a este acresceram cerca de 390 gr, o que perfaz um total de haxixe de cerca de 470 gr, o que constitui uma quantidade que permite a criação de diversas doses individuais, mas nem sequer está provado que seria o arguido a transformar o produto em doses individuais e a vendê-lo a retalho; – não resulta da matéria de facto provada qual o lucro que obteria com o produto; – e apesar de se saber que o arguido, ao tempo dos factos, estava desempregado [facto provado a)] , não resulta da matéria de facto provada que o arguido fizesse da venda de produtos estupefaciente o seu modo de vida; – não há prova da duração e da intensidade venda de estupefacientes; – não há prova de a quantos consumidores (finais) vendeu droga, se é que vendeu, pois também não consta da matéria de facto provada; – não se tem prova de qual a sua posição na cadeia de distribuição do produto ilícito.

XII – Para além das exigências relevantes em matéria de prevenção geral atento o crime praticado, mas sabendo que abstratamente não há um tipo legal de crime que à partida impeça a possibilidade de aplicação de uma pena de substituição, e que o regime das penas de substituição não está restrito, legalmente, à prática de específicos crimes, consideramos que, atenta a quantidade de produto estupefaciente adquirido, as exigências de prevenção geral são relevantes, pelo que a aplicação de uma pena de substituição se mostra insuficiente para satisfazer estas exigências.

XIII – Da personalidade do agente revelada nos factos, e da sua conduta posterior, em particular, a sua reação aos factos praticados, não podemos concluir que a simples censura do facto e ameaça da pena o afaste de posteriormente cometer crimes, ou que a aplicação de uma pena de substituição realize de forma adequada as exigências de prevenção especial.

Fonte: https://www.dgsi.pt




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