PROCESSO N.º 736/14.9TVLSB.L1.S1 Supremo Tribunal de Justiça
Data
14 de março de 2017
Descritores
Regulamento CE 44/2001
Declaração de executoriedade
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
Dupla conforme
Execução de decisão estrangeira
Estado estrangeiro
Requisitos
Decisão provisória
Trânsito em julgado
Ordem pública
Princípio do contraditório
Princípios de ordem pública portuguesa
Abuso do direito
Suspensão da instância
Indeferimento
Admissibilidade de recurso
Sumário
I – Em processo de declaração de executoriedade de sentença estrangeira, apesar da coincidência das decisões das instâncias – que a declararam executória – é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação, em virtude de ter sido nesta 2.ª instância que, pela primeira vez, se apreciou da verificação das condições das quais depende ou a atribuição ou a recusa de executoriedade à decisão estrangeira, não sendo, em consequência, aplicável a restrição decorrente da dupla conforme prevista no n.º 3 do atual art. 671.º do CPC.
II – Enquanto o reconhecimento de decisões estrangeiras consiste na extensão a um segundo Estado dos efeitos processuais que elas produzem no Estado de origem, a execução de decisões estrangeiras consiste na atribuição de executoriedade a essas decisões (isto é, consiste na concessão da qualidade de título executivo a essas decisões num Estado diferente daquele que é o Estado da sua origem), só podendo, assim, recair, sobre decisões com um conteúdo condenatório.
III – A declaração de executoriedade de uma decisão estrangeira pressupõe: (i) que esta decisão satisfaça as condições para ser reconhecida no Estado da sua origem; e (ii) que seja, ela própria, título executivo no mesmo Estado de origem (art. 38.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 44/2001).
IV – Para efeitos de reconhecimento e execução, é relevante uma decisão, na definição ampla do art. 32.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, proferida em matéria civil e comercial, com conteúdo definitivo ou provisório, independentemente de decorrer de uma ação, providência cautelar ou procédure de référé, aplicando-se as mesmas regras para qualquer tipologia da relação processual ou forma de tutela concedida.
V – Não beneficiam, porém, do regime de reconhecimento e execução, as decisões que autorizem medidas provisórias, sem cumprimento do contraditório, isto é, sem citação do requerido e que devam ser executadas sem prévia comunicação a essa parte.
VI – O trânsito em julgado da decisão não é um requisito do reconhecimento ou da execução de uma decisão estrangeira (cf. arts. 37.º, n.º 1, e 46.º, n.º 1, ambos do Regulamento (CE) n.º 44/2001): a circunstância de a decisão ser objeto de recurso ordinário no Estado de origem ou ainda não ter expirado o prazo para a sua interposição não obsta ao seu reconhecimento ou execução no Estado requerido, desde que a decisão não transitada seja considerada título executivo pela própria lei do Estado de origem.
VII – Deve ser declarada a executoriedade, no Estado português requerido, do acórdão proferido pelo Cour d’Appel du Grand Duché de Luxemburgo, que condenou o banco requerido, a pagar aos requerentes, “par provision” (a título provisório ou de provisão), a quantia de € 3 527 000, acrescida de juros legais até integral pagamento, o qual mantendo a eficácia própria da sua natureza de “medida provisória antecipatória”, pode servir de base à execução “provisória” da obrigação patrimonial para pagamento de quantia certa, no tribunal do mesmo Estado, sendo, ele próprio, título executivo, à luz da lei do Estado de origem (art. 938.º, § 2, do NCPC luxemburguês), onde, inclusivamente, já é objeto de execução provisória.
VIII – A interpretação restritiva do conceito de “medidas provisórias ou cautelares” do TJUE nos Acórdãos Van Uden/Deco-Line e Mietz/Intership Yachting Sneek – que exclui do conceito a medida provisória “antecipatória” – é efetuada apenas para efeitos de aferição da competência do “juiz das medidas provisórias”, que não seja competente para a ação definitiva, ou seja, na aceção relevante à luz do art. 31.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, que se reporta ao âmbito da competência direta e não na aceção dos arts. 32.º e 38.º do mesmo Regulamento, que atendem ao âmbito da competência indireta.
IX – Os tribunais dos Estados-membros podem recusar a concessão do exequátur a uma decisão proferida por um tribunal de um outro desses Estados, se essa concessão determinar uma violação inaceitável de princípios estruturantes do seu ordenamento jurídico ou que contrarie os princípios comunitários, certo que, não devendo ser dificultada a circulação de decisões entre os Estados-membros, segundo a jurisprudência do TJUE, a reserva da ordem pública do Estado requerido só deve operar em casos muito excecionais.
X – A ofensa da ordem pública pode respeitar: (i) à ordem pública material, quando envolva a violação de princípios e normas de direito material ou de Direito Internacional Privado (v.g., normas imperativas sobre a concorrência); ou (ii) à ordem pública processual, quando forem violados princípios e normas de direito processual (por exemplo, o direito a um processo equitativo, o dever de fundamentação das decisões, o princípio do contraditório, a garantia da imparcialidade do tribunal).
XI – Não colide com os princípios do ordenamento jurídico-processual português a atribuição de executoriedade a uma decisão que condena o banco requerido, ora recorrente, no pagamento, a título provisório, da quantia de € 3 527 000, que está a ser objeto de execução provisória no Estado de origem, enquanto o reconhecimento definitivo do direito dos requerentes, ora recorridos, ainda se mostra objeto de discussão na ação principal, com instância suspensa por estar pendente processo-crime, sendo que as decisões que vierem a ser proferidas num e noutro processo poderão vir a alterar, modificar ou mesmo extinguir o segmento condenatório “par provision” em causa, precisamente dada a natureza provisória da tutela concedida.
XII – Não agem com abuso do direito, os recorridos que requerem a declaração da executoriedade da decisão estrangeira na circunstância referida em VII e XI, não se podendo concluir que estejam a utilizar o poder contido na estrutura do direito exercitado para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido.
XIII – Ocorre fundamento de dispensa de suscitação de reenvio prejudicial de interpretação junto do TJUE, nos termos do art. 267.º do TFUE) se a norma que o recorrente pretende ver interpretada não tem aplicação no caso concreto – o art. 31.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001) – e se as normas aplicadas constantes dos arts. 32.º e 38.º do mesmo Regulamento, contextualizadas e interpretadas à luz do conjunto das disposições respeitantes à competência indireta, das finalidades e requisitos do mecanismo de concessão do exequátur não suscitam dúvidas interpretativas quanto à definição ampla constante do art. 32.º (que não distingue a natureza da tutela jurisdicional provisória concedida), por um lado, e à condição imposta pelo art. 38.º (que tal decisão consubstanciadora da tutela provisória antecipatória concedida constitua título executivo no Estado de origem), por outro lado.
XIV – Não há fundamento de suspensão da instância do exequátur a que se refere o art. 46.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 – nem há razões que justifiquem a sua interpretação extensiva – se, no âmbito do procedimento de référé, já foi proferida decisão definitiva pela Cour de Cassation du Gran-Duché de Luxembourg, transitada em julgado, não sendo a natureza provisória da tutela jurisdicional concedida equivalente, na perspectiva teleológica que justificasse aquela interpretação, ao carácter provisório decorrente do não trânsito em julgado da decisão.
XV – Não é admissível recurso para o STJ da decisão do tribunal da Relação que indeferiu a suspensão da instância perante este requerida em sede de apelação, nos termos do art. 46.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, por não ser ela “uma decisão proferida no recurso” na aceção relevante à luz do art. 44.º do mesmo Regulamento.
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)
Fonte: https://www.dgsi.pt