PROCESSO N.º 718/18.1T8LRA.C1 Tribunal da Relação de Coimbra

Data
20 de outubro de 2020

Descritores
Impugnação de facto
Ónus de especificação
Contradição de facto
Caso julgado
Fundamentos de facto
Factos essenciais
Factos complementares
Contrato de arrendamento
Resolução
Obras
Abuso de direito
Suppressio

Sumário

1. Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda.

2. A omissão desse ónus, imposto no referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não se satisfazendo o mesmo com a menção que a declaração de parte está gravada no sistema digital, ou com a indicação do início aos … e termo aos … (sendo que no caso nem existe transcrição de tais declarações);

3. Sobre este último ónus, o texto da lei e a sua interpretação histórico-actualista, repudiam interpretações facilitistas, que no fundo degeneram em violação: do princípio da igualdade das partes – ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -; do princípio do contraditório – por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor -; e do princípio da colaboração com o tribunal – por razões análogas, mas reportadas ao julgador.

4. Sendo de rejeitar, também, interpretações complacentes, que se contentam com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; com a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; já que a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

5. Na verdade, a 1ª interpretação faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal “indicação com exactidão das passagens da gravação”; a 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, acabando por não observar o cumprimento do verdadeiro requisito legal, e por outro lado, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo; a 3ª interpretação, não contém objecção de relevo pois a exigência de formalismo nada tem de extraordinário, como o tribunal constitucional já sinalizou; e na 4ª interpretação não se divisa ofensa da exigência de proporcionalidade, pois que, na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, o cumprimento rigoroso da lei, quanto ao indicado requisito de impugnação da matéria de facto, não é oneroso e é de fácil execução, não sendo anómala, no seu incumprimento, a respectiva rejeição do recurso

6. Resposta contraditória à matéria de facto é aquela que deriva da oposição entre as respostas dadas a pontos de factos controvertidos ou com factos já considerados assentes; ou seja, as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, quando não podem subsistir ambas utilmente, entrando em colisão uma com a outra.

7. O caso julgado não cobre os factos apurados numa sentença proferida para serem importados para outra sentença, ou seja, não podem ser importados directa e automaticamente de um processo para outro, já que o alcance do caso julgado não os cobre, antes abrangendo, apenas, o decidido (e os fundamentos absolutamente necessários conducentes a tal decisão).

8. Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório.

9. Se a R./locatária faz obras no locado, sem autorização do senhorio e no decurso das mesmas origina a demolição de uma das abóbodas existentes no tecto do locado, provocando a cedência do chão do piso de cima, onde se encontrava a abóboda, verifica-se causa justificativa para o senhorio resolver o contrato ao abrigo do art. 1083º, nº 2, do CC.

10. Tais obras não podem ser justificadas com a urgência prevista no art. 1036º, nº 2, do CC, para as reparações, se o risco iminente de desabamento da abóboda apenas foi apurado já no decurso das obras; o que significa que as mesmas, inicialmente com o objectivo de resolver problemas de humidade numa das paredes, foram iniciadas sem que a R./locatária sequer cogitasse qualquer situação de urgência;

11. De entre as modalidades que a figura vasta do abuso de direito abarca a denominada suppressio corresponde ao seguinte: perderia a sua posição jurídica a pessoa que não a exerça por um período de tempo e em circunstâncias tais que não mais seja de esperar qualquer exercício;

12. A suppressio redunda num modelo de confiança destinado a proteger um determinado beneficiário com as proposições seguintes: – um não exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não exercente do direito. Para tanto há que considerar as circunstâncias do caso concreto e ver se existem indícios objectivos de que o direito em causa não será exercido.

13. Se no caso dos autos se verifica apenas o singelo facto do decurso do prazo de 7 anos, despido do apuramento de outras circunstâncias nem se desvelaram indícios objectivos de que os AA não exerceriam o seu direito à resolução do contrato, não é possível concluir que os AA, ao terem exercitado tal direito, estão a exercer ilegitimamente o mesmo, estão a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé (como determina o art. 334º do CC).

Fonte: http://www.dgsi.pt/




O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados disponibiliza a presente newsletter. Esta compilação não pretende ser exaustiva e não prescinde a consulta das versões oficiais destes e de outros textos legais.