PROCESSO N.º 689/19.7PCRGR.L1-3 Tribunal da Relação de Lisboa

Data
21 de outubro de 2020

Descritores
Violência doméstica
Violação
Concurso

Sumário

I.– É, entendimento dominante, que o factor que serve de base para a distinção entre um concurso aparente de normas e um concurso real é o bem jurídico protegido por cada norma, sendo que, haveria uma relação de consunção sempre que o bem jurídico de uma das normas fosse alvo de protecção pela outra.

II.– No caso em apreço, um dos crimes imputados ao arguido é o crime de violência doméstica, que revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade e integridade moral como ser humano.

III.– Por isso, na tutela da violência doméstica integram-se outras tutelas que também estão previstas no código penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados, como ocorre no crime de ofensa à integridade física, no crime de ameaça, nos crimes sexuais etc.

IV.– No plano dos princípios, todos aqueles crimes podem fazer parte do leque de comportamentos de que o agente se socorre para infligir maus-tratos à vitima, no contexto familiar, clássico da violência doméstica.

V.– Assim, o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar que, pela sua continuidade no tempo, interacção próxima entre agente e vítima, assente muitas vezes em situações de grande intimidade física, ocorridas num contexto de reserva de vida privada, longe dos olhares das pessoas, e assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.

VI.– Mas, se o crime de violência doméstica visa acautelar o que podemos chamar de um bem jurídico complexo ou multi-facetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvos de tutela penal, há que compreender quando é que essa tutela global, ínsita no crime de violência doméstica, abrange de forma adequada todo o comportamento criminal do agente, numa tutela eficaz da vítima e quando há que punir, autonomamente, outros comportamentos do agente embora eventualmente perpetrados no mesmo contexto.

VII.– Aqui reside o busílis da questão pois que, quando estão em causa crimes que aparentam maior gravidade em termos punitivos, a moldura penal prevista para o crime de violência doméstica não se afigura uma protecção adequada da vítima, nem prossegue os fins das penas.

VIII.– É certo que, nos termos do disposto no nº 1 do artº 152º do CP, vem prevista uma cláusula de salvaguarda através da qual o legislador determinou que a punição do crime de violência doméstica é de 1 a 5 anos de prisão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Ou conforme anota PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica”. In “Comentário ao Código Penal”, p. 594.

IX.– Mas, nesta situação o problema mantém-se porquanto, e embora se passa a aplicar ao agente a moldura penal mais elevada dos crimes que isoladamente possa ter perpetrado, o mesmo continua a ser punido por um único crime, passando o crime de violação, por exemplo, a absorver o crime de violência doméstica o que retira por completo a tutela deste crime que, como vimos, merece um enquadramento próprio.

X.– Na prática absorver o crime de violação no crime de violência doméstica ou absorver o crime de violência doméstica no crime de violação, nunca permitirá a efectiva tutela de todos os bens jurídicos visados pelas respectivas incriminações penais.

XI.– Tem sido jurisprudência constante do STJ Cfr. Acórdãos de 10-11-2016 (porcº nº 163/14.8GBSTC.S1), de 20-04-2017 (porcº nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1), de 07-02-2018 (procº nº 312/15.9POLSB.S1), de 27-06-2018 (procº nº 131/17.8JAPRT.S1), de 04-07-2018 (procº nº 274/16.5GAMCN.P1.S1) e de 21-11-2018 procº nº 574/16.4PBAGH.S1). o entendimento de que o crime de violação, quando concretamente delimitado, e o crime de violação doméstica estão em situação de concurso efectivo.

XII.– Ora, no caso em apreço, dúvidas não podem restar que os factos que permitem integrar a prática pelo arguido de um crime de violação separam-se, de forma até muito clara, dos restantes factos que dão origem à verificação do crime de violência doméstica.

XI.– Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, pelo que ao arguido deve ser imputada, a par da pratica de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do CP, um crime de violação p. e p. pelo artº 164º nº 1 al. a) do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes.

(Sumário elaborado pela Relatora)




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