PROCESSO N.º 44/19.9YFLSB Supremo Tribunal de Justiça
Data
23 de setembro de 2020
Descritores
Suspensão do exercício de funções
Suspensão preventiva
Demissão
Oficial de justiça
Licença sem vencimento de longa duração
Poder disciplinar
Sanção disciplinar
Deveres funcionais
Prescrição
Prescrição da infração
Início da prescrição
Erro
Non bis in idem
Violação de lei
Princípio da proporcionalidade
Sumário
I – As infrações disciplinares sob apreciação foram praticadas pelo autor quando, ao abrigo de licença sem vencimento de longa duração como secretário judicial, exerceu funções enquanto advogado e administrador de insolvências. Não estava, portanto, em efetividade de funções ao serviço da então Direcção-Geral dos Serviços Judiciários, atual Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ).
II – Pelo que a remessa da certidão (contendo a condenação penal pelo tribunal onde correra termos o processo n.º 2077/14JFLSB), em observância do disposto no art. 179.º, n.os 1 e 2, da LGTFP (de acordo com os quais, quando um trabalhador em funções públicas seja condenado pela prática de crime, a secretaria do tribunal por onde corra o processo, no prazo de 24 horas sobre o trânsito em julgado da decisão, entrega, por termo nos autos, cópia ao Ministério Público, a fim de que este a remeta ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções), teve como destinatários a Ordem dos Advogados e a Comissão de Acompanhamento dos Administradores Judiciais o que não permite dar como seguro que o COJ tomou conhecimento dessa condenação antes da data em que alegou ter tomado conhecimento.
III – Os elementos que relevam para determinar esta prescrição de curto prazo são os constituídos por todo o expediente que foi coligido e apresentado ao Plenário do COJ com vista a deliberar sobre a instauração, ou não, de processo disciplinar. Tais diligências iniciaram-se com um email de 27-09-2018, no âmbito do qual o COJ foi pela primeira vez alertado para a existência de inquéritos em que o aqui autor figurava como arguido, antes ainda de ter conhecimento de que o ora demandante fora condenado noutro processo crime; e só depois disso, nomeadamente a 09-11-2018, é que deram entrada no COJ os acórdãos proferidos no processo criminal que haviam condenado o aqui demandante.
IV – Por último, não há qualquer elemento que comprove que o autor tenha dado conhecimento ao COJ dessa anterior condenação. O autor não alega sequer que, quando solicitou ao Diretor-Geral da Administração da Justiça o regresso ao serviço, a 15-11-2017, tenha apresentado certificado de registo criminal, nem que informou que tinha sofrido a referida condenação. De resto, dos autos resulta agora, afinal, que essa indicação não estava aí vertida.
V – Sendo assim, nada permite infirmar que o COJ só teve conhecimento da referida condenação em 09-11-2018, como está assente no relatório final. Pelo que tem de se julgar que o procedimento disciplinar, instaurado que foi a 06-12-2018 foi instaurado antes de decorrido o prazo de 60 dias sobre aquela data de 09-11-2018, em que o COJ a quem compete, funcionando em plenário, nos termos do art. 94.º, n.º 1, 111.º, al. a), e 113.º da EFJ, a instauração do procedimento disciplinar tomou conhecimento das infrações.
VI – Como é jurisprudência firme desta Secção do Contencioso o vício de violação de lei ocorre quando é efetuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a à realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar à realidade que devia ser aplicada” O erro de direito pode respeitar à lei a aplicar, ao sentido da lei aplicada ou à qualificação jurídica dos factos: no primeiro caso, aplicou-se por engano ou por ignorância uma norma quando era outra a aplicável (erro na aplicação); no segundo caso, aplicou-se a lei correta, mas interpretou-se mal (erro na interpretação); no terceiro caso, qualificaram-se certos factos numa figura jurídica quando deviam sê-lo noutra (erro na qualificação).
VII – O vício de violação de lei configura, assim, uma ilegalidade de natureza material, sendo a própria substância do ato administrativo que contraria a lei. A ofensa da lei não se verifica aqui nem na competência do órgão nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objeto do ato. Tal vício produz-se normalmente no exercício de poderes vinculados, mas também pode ocorrer no exercício de poderes discricionários, quando, designadamente, sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, máxime os princípios constitucionais da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da boa fé.
VIII – A licença sem vencimento de longa duração, concedida ao autor ao abrigo do art. 78.º, n.os 1 e 2, do DL n.º 497/88, de 30 de dezembro, com os efeitos previstos no art. 80.º do mesmo diploma legal, não afastou os direitos, deveres e garantias das partes, na medida em que não pressupunham a efetiva prestação de trabalho. Isso mesmo decorria de preceitos normativos vigentes à data, quer da concessão da licença sem vencimento, quer da prática das infrações, e resulta hoje igualmente da LGTFP, vigente à data da aplicação da sanção.
IX – Dispunha o art. 2.º do DL n.º 398/83, de 2 de novembro (revogado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto), com o âmbito de aplicação previsto no art. 1.º, que «durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes, na medida em que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho».
Também o art. 231.º, n.º 1, da Lei n.º 59/2008, de 11 de novembro, que aprovou o RCTFP (revogado pela Lei n.º 35/2014) veio a dispor: “Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho”.
Finalmente, em redação similar, dispõe atualmente o n.º 1 do art. 277.º da LGTFP: “Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes, na medida em que não pressuponham a efetiva prestação do trabalho.”
X – O próprio regime jurídico disciplinar contido no EDTFP e na LGTFP enuncia claramente essa submissão a (alguns) deveres disciplinares, independentemente das vicissitudes que a relação jurídica de emprego pública venha a sofrer. Assim era com o art. 4.º, n.os 3 e 4, do EDTFP, e assim se mantém com o art. 176.º, n.os 3 e 4, da LGTFP.
Dispõe este preceito: “3 – Os trabalhadores ficam sujeitos ao poder disciplinar desde a constituição do vínculo de emprego público, em qualquer das suas modalidades. 4 – A cessação do vínculo de emprego público ou a alteração da situação jurídico-funcional do trabalhador não impedem a punição por infrações cometidas no exercício da função“.
XI – Como unanimemente tem assinalado a doutrina «[a] alteração da relação jurídica de emprego não prejudica a aplicação de sanção disciplinar até porque mantém a relação de emprego». Se o empregador público tem o poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço enquanto durar o vínculo de emprego público (art. 76.º da LGTFP) e, além disso, todos os trabalhadores são disciplinarmente responsáveis perante os seus superiores hierárquicos (art. 176.º, n.º 1, da LGTFP), compreende-se a solução normativa dos n.os 3 e 4 do mesmo art. 176.°, ao estabelecer que a sujeição ao poder disciplinar se inicia com a constituição do vínculo de emprego público, em qualquer das suas modalidades, sem que a alteração da situação jurídico-funcional impeça a punição por infrações cometidas no exercício da função ou suscetíveis de comprometer a dignidade desta».
XII – De acordo com a natureza da licença sem vencimento, enquanto vicissitude da relação funcional, o que nela se verifica é tão somente uma modificação da relação jurídica de emprego público decorrente da mera suspensão do vínculo, mas não cessação da relação funcional.
Como refere a jurisprudência, mantendo-se embora o vínculo à função pública, ficam suspensos os deveres dos funcionários que sejam inerentes à efetividade da prestação de serviço público, entre os quais se incluem os deveres gerais de zelo, obediência, lealdade, correção, assiduidade e pontualidade Porém, tal não invalida que se mantenham outros deveres funcionais gerais, nomeadamente aqueles que não pressuponham a manutenção do exercício efetivo de funções, como o sejam os deveres da prossecução de interesse público, da imparcialidade, da isenção e da lealdade (cfr. arts. 66.°, n.º 1, do EFJ e 73.º, n.os 2, als. a), b), c) e g), 3, 4, 5 e 9, da LGTFP).
XIII – A doutrina e a jurisprudência são unânimes em considerar que pode normalmente ser qualificada como infração disciplinar qualquer conduta de um agente que caiba na definição legal, uma vez que a infração disciplinar é atípica. É, assim, disciplinarmente ilícita qualquer conduta do agente que transgrida a conceção dos deveres funcionais válida para as circunstâncias concretas da sua posição de atuação. Podem constituir motivo de ação disciplinar os factos que estão indexados com a vida pública do funcionário e os que colidam com a imagem de dignidade associada às funções que se relacionam com a administração da justiça.
Como tal, o COJ, quer quando mandou instaurar o procedimento disciplinar, quer quando suspendeu preventivamente o autor de funções, quer quando o puniu, atuou no exercício legítimo do poder disciplinar que lhe assistia.
XIV – O princípio ne bis in idem tem previsão constitucional e, por isso, é dotado de particular força cogente, pelo que, apesar de reportado às garantias do arguido em sede criminal, é aplicável também nos outros direitos sancionatórios públicos, no âmbito respetivo.
XV – Como ensina a doutrina sendo «caso de acumulação de empregos públicos, a aplicação de uma sanção no âmbito de uma das relações de emprego não deve ter efeitos sobre a outra, sem prejuízo de os factos integrativos da infração punida poderem consubstanciar violação de deveres e obrigações do trabalhador no âmbito da outra, caso em que não é de excluir a instauração de procedimento disciplinar. Com efeito, sendo os empregadores públicos diferentes, é no quadro de cada uma das relações jurídicas de emprego que tem de ser aferida a não observância pelo trabalhador dos deveres e obrigações a que está vinculado no quadro das mesmas».
Vale isto por dizer que a prática de uma infração criminal pode ter respaldo disciplinar em tantas as carreiras/ordens profissionais quantas o trabalhador tenha vínculo ou inscrição ativa, com diferentes consequências, sem que tal viole o princípio ne bis in idem ou o disposto no art. 180.º, n.º 3, da LGTFP.
XVI – O que é tanto mais pertinente quanto é certo que, no caso, nem sequer se está perante o mesmo e exato regime disciplinar, aplicável transversalmente a todos os substratos profissionais em que se moveu o autor. Não está designadamente em causa a submissão a um quadro normativo exatamente comum, como seria o caso de o autor ter estado em tribunais diversos durante a prática das infrações em causa, ou no caso mais comum de mobilidade entre pessoas coletivas de direito público submetidas ao mesmo regime disciplinar (designadamente, o da LGTFP).
Fonte: https://www.dgsi.pt