PROCESSO N.º 3308/16.0T8PDL.L1-7 Tribunal da Relação de Lisboa
Data
10 de novembro de 2020
Descritores
Negócio jurídico
Anulação
Incapacidade acidental
Notário
Dever de recusa de celebração
Sumário
I. Tendo sido as declarações de parte do 1º Réu dominadas por detalhes oportunistas em seu favor, procurando o 1º Réu, sistematicamente, justificar a respetiva conduta e enaltecer o seu trabalho em prol do autor, tal centralização nestes detalhes constitui um preditor de falta de objetividade das declarações.
II. Acionam o indício Insidia, atinente à incapacidade acidental do outorgante autor, as seguintes circunstâncias: o autor ficou acamado, com paralisia do lado direito, totalmente dependente da assistência de terceiros; quem privava, diariamente e durante muito tempo (muito mais do que com a filha), com o autor, mesmo alimentando-o, era o 2º Réu, o qual trabalhava para o autor há muitos anos, sendo também motorista do autor desde o AVC; nos últimos dois anos que antecederam a morte do autor, os réus eram presença habitual na residência do autor, acompanhando-o diariamente, conhecendo os seus problemas de saúde; os réus levaram o autor várias vezes a Cartório Notarial para outorgar, com assinatura a rogo, vários atos de valor elevado cujos beneficiários foram sempre os réus, sendo estes que escolheram as testemunhas quando necessárias.
III. Entre as sequelas de um AVC avultam: problemas de discurso, perda de controlo emocional, mudanças de humor, perda de memoria e de bom senso, diminuição da capacidade de cálculo e dificuldade de resolução de problemas.
IV. Num contexto em que o outorgante em testamento e outros atos notariais padece de doença que, no plano clínico e cientifico, implica a deterioração progressiva das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, incumbe ao peticionante da anulabilidade dos atos jurídicos praticados pelo outorgante “provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais”. Ao Réu, que pugne pela validade de tais atos, cabe provar factos extintivos do direito invocado, nomeadamente que o outorgante/testador, no momento da outorga, se encontrava num “intervalo lúcido” do seu estado de demência.
V. O notário deve recusar a prática de atos sempre e que tenha dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos participantes, salvo se no ato intervierem, a seu pedido ou a instância dos outorgantes, dois peritos médicos que, sob juramento ou compromisso de honra, abonem a sanidade mental daqueles (Artigo 11º, nº2, al. b), do Estatuto do Notariado).
VI. Deverá a Ordem dos Notários apreciar a conduta do Sr. Notário ocorrida neste contexto: comparência do autor nos dias 18.12.2015, 5.1.2016, 8.1.2016, 3.2.2016 e 24.2.2016 no Cartório Notarial, sempre em cadeira de rodas, paralisado do lado direito, com dificuldades na fala, sempre acompanhado dos Réus, outorgando em vários atos que tiveram sempre como beneficiários os Réus, com assinatura a rogo; o Sr. Notário, no âmbito do seu depoimento, foi o próprio a afirmar que, várias vezes, “achei que não seria uma coisa natural o tipo de escritura que estava a ser feita”, razão pela qual perguntou ao autor – perante essa anormalidade em termos de conteúdo, sobretudo pelos valores elevados (v.g., reconhecimento de dívida de quatro milhões de euros) – se era aquela a sua vontade, tendo o autor sempre respondido que “sim”; “Não posso responder em termos clínicos” qual era a situação do autor.
Fonte: https://www.dgsi.pt