PROCESSO N.º 188/21.7GAVNO.E1 Tribunal da Relação de Évora

Data
22 de fevereiro de 2022

Descritores
Cibercrime
Localização celular
Dados de tráfego

Sumário
I. Quer a Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009), quer a Lei de Conservação ou Retenção de Dados (Lei nº 32/2008), são leis especiais no seu campo de ação relativamente ao regime das escutas constantes do Código de Processo Penal.

II. Esta interpretação supõe a conjugação das previsões dos artigos 1º, nº 1, al. g), 3º e 9º da Lei nº 32/2008, enquanto regime de previsão normativa base (crimes graves como finalidade exclusiva da conservação), de competência orgânica (via autorização do Juiz de instrução) e pressupostos de deferimento («se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, deteção e repressão de crimes graves»).

III. Tal interpretação, no aspeto processual, evita os óbvios perigos substantivos de violação da Constituição da República Portuguesa, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e – como bem salientado pelo TJUE – da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

IV. A Lei nº 32/2008, de 17/07, expressamente afirma no seu artigo 1º, nº 1, ser uma transposição da Diretiva nº 2006/24/CE, mas como foi muito claramente declarada inválida pela Grande Secção do Tribunal de Justiça da UE no acórdão de 08-04-2014 nos processos Digital Rights Ireland Ltd (C-293/12) e Kärntner Landesregierung, Michael Seitlinger, Christof Tschohl (C-594/12), deve ser hoje analisada como uma Lei nacional autónoma.

V. O facto de um acto normativo comunitário ter sido declarado inválido não arrasta ipso facto a invalidade de um ato normativo nacional que o pretendia transpor. Nada o afirma em termos normativos no Tratado da União Europeia ou no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. E não há uma invalidade automática e subsequente do acto legislativo nacional de transposição.

VI. A Diretiva (UE) 2019/713 contém uma dupla perspetiva, a Fraude e a Contrafação. O termo “contrafação” exige uma vertente de “falsificação material” de um instrumento ou meio de pagamento. O termo “fraude” é usado aqui num sentido amplo que inclui modelos de tipos criminais clássicos, como ela própria refere, «formas de conduta clássicas, como fraude, falsificação, furto e apropriação ilícita, que já foram delineadas pelo direito nacional antes da era digital» e «o envio de faturas falsas».

VII. Assim, o termo “fraude” pode incluir qualquer tipo penal clássico que seja praticado com meios digitais, incluindo a burla, crime que aqui está em causa.

VIII. Mas, contrariamente ao que a própria Diretiva sugeriu, o legislador nacional na Lei 79/2021 não seguiu o conselho quanto à “fraude”, limitou-se a seguir o conselho da Diretiva quanto à contrafação, criando vários tipos penais de contrafação que veio a incluir na Lei nº 109/2009, a Lei do Cibercrime, nos artigos 3º-A a 3º-F.

IX. E, depois, viu-se na necessidade de alterar a al. g), do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 32/2008 para incluir a expressão «contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação» apenas para conseguir incluir as novas “contrafações da Lei do Cibercrime e alargar o objeto da “conservação” e o seu prazo.

X. A localização celular constitui violação da privacidade do cidadão. Estamos, pois, a falar de intrusão do Estado na privacidade do cidadão.

XI. E a defesa do cidadão faz-se, habitualmente, pela definição clara de “catálogos de crimes” a que fica sujeita a ação dos operadores de comunicações e do Estado à face dessa legislação, à imagem do que ocorre com o catálogo de crimes do CPP e da Lei do Cibercrime. E, neste particular ponto, entendemos que os artigos 3º e 9º da Lei nº 32/2008 só podem ter o significado que lhe atribuímos, o de um catálogo de crimes limitador da ação do Estado face à privacidade do cidadão.

Fonte: https://www.dgsi.pt




O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados disponibiliza a presente newsletter. Esta compilação não pretende ser exaustiva e não prescinde a consulta das versões oficiais destes e de outros textos legais.