PROCESSO N.º 1384/20.0T9GMR-A.G1 Tribunal da Relação de Guimarães
Data
11 de janeiro de 2021
Descritores
Violência doméstica
Declarações memória futura
Direito de audição
Deferimento
Sumário
I – Não se verificando, em concreto, os pressupostos vertidos no nº1 do art. 271º do CPP, preceito legal invocado pelo Ministério Público para a peticionada tomada de declarações à ofendida, alegada vítima de violência doméstica, cumpre analisar a pretensão sob o prisma legal do regime vertido no art. 33º da Lei nº 112/2009, de 16.09.
II – Por força deste regime jurídico autónomo, no caso de inquérito por crime de violência doméstica, a lei estabeleceu um regime mais favorável, concedendo legitimidade à vítima [a par da concedida ao MP] para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando dessarte a sua proteção e evitando as situações de revitimação ocorridas por via da sua nova audição em audiência de julgamento, quando a mesma não se mostrar necessária, mas antes suscetível de colocar em causa a saúde física ou psíquica da ofendida.
III – É consabido que o decurso do tempo é suscetível de perturbar a memória da vítima, fruto do trauma posterior. Nas situações de violência doméstica é ainda frequente a ocorrência de novas ofensas, físicas e/ou psíquicas, por parte do agressor à vítima, por vezes com resultados muito nefastos, quando não fatais, mesmo posteriormente à formalização de denúncia às autoridades competentes por esta, e, em muitos casos, precisamente por a ofendida se “atrever” a exercer esse direito. Ademais, a vítima de violência doméstica que denuncia os factos é frequentemente confrontada com chantagem psicológica por parte dos perpetradores, muitas vezes com vãs promessas de alterarem os seus comportamentos, ou então com ameaças à sua integridade física ou vida, com o fito de aquela, em audiência de julgamento, não prestar declarações ou negar os factos que antes haviam sido por si manifestados e que sustentaram a acusação pública, o que sucede efetivamente em múltiplos casos.
IV – Sendo o indiciado crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos (cf. art. 152º, nºs 1, al. d), e 2, do CP) integra a noção de «criminalidade violenta» tal como definida no art.° 1.°, alínea j), do C.P.P., e, como tal, urge considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do CPP [aditado pela Lei nº 130/2015, de 04.09] ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
V – Também a Lei nº 130/2015, de 04.09, agora para a criminalidade em geral, reconhece, enquanto medida especial de proteção, o direito de audição em declarações para memória futura às vítimas especialmente vulneráveis, em termos idênticos aos previstos para as vítimas de violência doméstica (cf. arts. 21º, nºs 1 e 2, al. d), e 24º).
VI – In casu, verifica-se que: a) a alegada vítima de violência doméstica apresenta vetusta idade [nasceu a -.07.1924, contando, à data da decisão recorrida, com 95 anos de idade, a escassos 19 dias de perfazer 96 anos], sendo que nos situamos ainda num tempo marcado pela pandemia da doença COVID-19, que, desafortunadamente, muitas vidas tem colhido, particularmente entre a população idosa, o que permite afirmar o risco de ocorrência de acometimento de alguma doença grave ou mesmo do indesejado falecimento daquela até que preste declarações em sede de audiência de julgamento (relembre-se que, à data, ainda não havia sido deduzida acusação); b) a suspeita é filha da vítima e, como tal, pessoa que facilmente se pode voltar a aproximar desta, sendo a ofendida, em função da sua avançada idade, notoriamente incapaz de se defender dos indiciados maus tratos sobre si cometidos (quase diariamente) ou que venham a ser cometidos.
VII – Ponderados conjuntamente tais fatores, é de deferir a peticionada tomada de declarações à ofendida, assim assegurando à vítima a justa e legal proteção que a sua especial vulnerabilidade reclama e contribuindo sobremaneira para evitar a indesejável, dado que psicologicamente marcante, repetição de inquirições à mesma; por outro lado, a antecipação da sua inquirição também contribuiria para a preservação da prova e, dessa forma, para assegurar a boa administração da justiça.
Fonte: https://www.dgsi.pt