PROCESSO N.º 1301/19.0BELSB Tribunal Central Administrativo Sul

Data
14 de maio de 2020

Descritores
Asilo- Retoma a cargo- Itália
Audiência prévia- Falhas sistémicas- Refoulement indireto
Artigo 3.º, n.º 2 Regulamento (UE) 604/2013- Artigo 3.º CEDH- Artigo 4.º CDFUE

Votação

UNANIMIDADE, COM DECLARAÇÃO DE VOTO

Sumário

I- O exercício do direito de audiência prévia previsto no art.º 5.º, n.º 6 do Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (doravante, Regulamento Dublin), não obriga a que o relatório ou resumo da entrevista seja notificada ao requerente antes de ser emitida a decisão final deste procedimento especial, nos termos do art.º 17.º da Lei do Asilo, assim como não impõe que ao requerente deva ser notificado o projeto de decisão de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional e subsequente transferência para o Estado responsável, por forma a que possa emitir a sua pronúncia.

II- No âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável ao abrigo do Regulamento Dublin, e de acordo com o disposto no art.º 5.º, n.º 6 do dito Regulamento, o direito de audiência prévia do requerente de asilo pode ser exercido durante a entrevista pessoal a que se refere o art.º 5.º, n.º 1 do mesmo Regulamento, ou no final da mesma entrevista, contanto que ao requerente seja prestado todo o manancial informativo descrito no art.º 4.º do aludido Regulamento, e lhe seja dada a oportunidade de apresentar cabalmente todos os seus argumentos, razões e factos, mormente no caso de uma provável transferência para outro Estado.

III- Entendendo-se que o direito de audiência prévia pode ser exercitado em sede da entrevista pessoal descrita no art.º 5.º, n.º 1 do Regulamento, deve igualmente entender-se que o direito de audiência prévia queda aniquilado no caso de o seu exercício por banda do requerente de proteção internacional ser, algum modo, desadequado, incompleto ou insuficiente.

IV- O direito europeu consagra, em matéria de asilo, a garantia a um procedimento justo, que inclui o direito a uma análise individualizada e atualizada do pedido de proteção internacional.

V- Tal direito a um procedimento justo constitui uma garantia de efetivação do direito de asilo, encarado este como um direito fundamental internacional ao acolhimento, titulado por todos os que reúnam determinadas condições.

VI- Ora, a ausência de procedimento justo e individualizado para efeitos de concessão de asilo, ou o impedimento de acesso ao mesmo, pode constituir infração ao art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ou ao art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conduzindo à anulação da decisão de transferência de um requerente de asilo no domínio do Regulamento Dublin, como aliás foi já firmado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em sede de reenvio prejudicial, no Acórdão proferido pela Grande Secção em 21/12/2011, nos processos apensos C-411/10 e C-493/10, N.S. vs Secretary of State for the Home Department.

VII- Tendo sido alegado pelo requerente de proteção internacional, além de ter afirmado não querer regressar a Itália, que – quanto ao período em que permaneceu em Itália- “(…) quando tinha alguma dor, nunca me levaram ao médico, o campo para refugiados onde eu estava em Avelino, foi encerrado e fui colocado na rua, onde vivi durante 20 dias. Mesmo quando estava no campo, não fazia nada, nem estudava”, impunha-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras uma averiguação dos factos mais profunda e cuidadosa relativamente às circunstâncias referenciadas pelo requerente, indiciadoras da sonegação de cuidados de saúde e de alojamento por banda das autoridades italianas.

VIII- Tal averiguação assoma como crucial, em virtude de subsistir no Direito da União Europeia um princípio de non-refoulement, derivado do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que constitui uma barreira de absoluta intransponibilidade, e da qual resulta a proibição de transferência de qualquer pessoa para outro Estado se essa transferência acarreta o risco de tortura, ou de tratamento humano ou degradante.

IX- Este princípio tem sido afirmado desde há muito, tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia reiterado o sobredito valor principiológico no Acórdão proferido em 16/02/2017 no processo C-578/16 PPU, C.K. vs Republika Slovenija, e explicitado que deve admitir-se outras circunstâncias fundamentadoras de uma proibição de transferência de um requerente de asilo para o Estado responsável para além das falhas sistémicas que neste Estado possam existir.

X- Nesta senda, o risco de violação do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser avaliado de modo completo e individual, abarcando não só o risco de devolução direta ou de devolução em cadeia (ou indireta), como o próprio risco da transferência em si mesma, em concordância com a Jurisprudência cristalizada no Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no Acórdão promanado em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, queixa n.º 30696/09, bem como no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia promanado em 16/02/2017, no processo C-578/16 PPU, C.K. vs Republika Slovenija.

XI- A consideração do princípio de non refoulement e a respetiva importância para o sistema Dublin está já estabelecida pela Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, especificamente, nos Acórdãos promanados em 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e em 04/11/2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.

XII- O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não possibilitou ao requerente a apresentação de todo o acervo de razões e factos potencialmente obstaculizantes à emissão da decisão de transferência, demitindo-se também da realização de qualquer diligência instrutória apta a confirmar ou infirmar o teor do declarado pelo requerente.

XIII- Neste contexto, valorizando a insuficiência e incompletude do exercício do direito de audiência prévia, impera concluir que tal direito foi, afinal, coartado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, atendendo ao modo como auscultou o requerente e à absoluta passividade e indiferença com que encarou e tratou as breves declarações do requerente.

XIV- O que quer dizer que, por ter sido exercido de modo deficiente em virtude da concreta atuação do aludido Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, deve concluir-se pela violação do direito de audiência prévia do requerente, violação esta que inquina as decisões de inadmissibilidade e transferência de ilegalidade.

XV- A atuação do Estado não é estritamente vinculada, no sentido em que ocorre impedimento absoluto de análise de um pedido de proteção internacional se o requerente já tiver formulado pedido similar noutro Estado-Membro.

XVI- Para além da cláusula de soberania inscrita no art.º 17.º, bem como para além das situações de existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e do risco de tratamento desumano, descritas no art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, o mesmo instrumento jurídico estipula claramente, em jeito até de “válvula de segurança” e de favorecimento da posição do requerente de asilo, a possibilidade de um Estado-Membro assumir, no âmbito do exercício de um poder discricionário, a responsabilidade pela decisão do pedido de proteção internacional, independentemente dos critérios e regras estabelecidas.

XVII- A existência de um prévio pedido de proteção internacional formulado perante outro Estado-Membro não dispensa o exame cuidadoso da situação apresentada pelo requerente de asilo.

XVIII- A omissão da análise individualizada e cuidadosa da situação do requerente de asilo não só contraria todo o espírito que preside à existência do Regulamento de Dublin- e veja-se a este propósito os considerandos 9, 11, 15, 17, 18, 19, 21, 22 e 39-, como pode conduzir ao desrespeito da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, especialmente dos art.ºs 19.º, 41.º e 47.º.

XIX- É nosso entendimento que subsistem claros, evidentes e demonstrados indícios da existência de falhas sistémicas no sistema de receção e acolhimento de refugiados do Estado Italiano, derivados quer na atual modelação do sistema legal italiano, quer na insuficiência manifesta de condições materiais.

XX- Estas asserções decorrem dos relatos, descrições, informações, conclusões e notícias veiculadas e difundidas por múltiplas ONG’s, bem como por instituições internacionais dedicadas ao acompanhamento, tratamento e análise dos aspetos legais e da implementação prática de todo o sistema internacional de asilo, das quais salientamos o European Council on Refugees and Exiles (doravante, ECRE), a Asylum Information Database (em diante, apenas AIDA), o Conselho da Europa- Comité Europeu para a Prevenção de Tortura e das Penas ou Tratamento Desumano ou Degradante, o Danish Refugee Council, o Swiss Refugee Council, a European Database of Asylum Law (EDAL, em diante), a European Legal Network on Asylum (doravante, ELENA), a European Asylum Support Office (EASO, em diante) e a Associazione per gli Studi Guiridici Sull’ Immigrazione (ASGI).

Fonte: https://www.dgsi.pt




O Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados disponibiliza a presente newsletter. Esta compilação não pretende ser exaustiva e não prescinde a consulta das versões oficiais destes e de outros textos legais.