PROCESSO N.º 1/13.9YGLSB.S1 Supremo Tribunal de Justiça

PROCESSO N.º 1/13.9YGLSB.S1

Data
17 de abril de 2015

Descritores
Única instância
Juíza desembargadora
Advogado
Legitimidade
Ministério Público
Nulidade
Inquérito
Meios de prova
Meios de obtenção da prova
Proibição de prova
Segredo profissional
Estatuto da Ordem dos Advogados
Actos próprios dos advogados
Agente provocador
Agente infiltrado
Evolução legislativa
Doutrina
Jurisprudência
Avença
Contrato atípico
Regime legal
Crime
Peculato
Funcionário
Comunicabilidade
Conformação do crime
Cruz vermelha portuguesa
Regime juridico
Pessoas colectivas de utilidade pública administrativas «especiais»
Concurso de infracções
Bem jurídico protegido

Sumário

I – A dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” ou “prova bastante” de prática de crime e da sua imputação ao acusado.

II – O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como a final da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível.

III – Carece de prévia indagação a qualificação jurídica do sujeito activo, só podendo afirmar-se a ilegitimidade do Ministério Público depois de descaracterizado o crime de peculato, por ausência da qualidade de “funcionário” por banda do sujeito activo, questão por seu turno, relacionada com a prévia e imprescindível necessidade de caracterização da pessoa colectiva posta em foco, no contexto presente, a Cruz Vermelha Portuguesa, maxime, a sua natureza jurídica e tipo de tarefas cometidas.

IV – Concluindo-se pela não configuração do tipo de crime específico em causa, implodindo a caracterização emprestada pela acusação, caindo a conduta indiciada na figura do crime de abuso de confiança, faltará o pressuposto de procedibilidade, como decorre do disposto nos artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 205.º, n.º 3, do Código Penal.

V – Só depois de efectuado o enquadramento jurídico-criminal é possível saber-se, se sim ou não, estamos face a um crime de peculato, caso em que o Ministério Público terá plena legitimidade (para além do dano patrimonial, em causa está o interesse na observância da lisura dos funcionários, que questionado será face a hipótese de violação funcional); caso contrário, falecerá legitimidade por falta de queixa da ofendida Cruz Vermelha Portuguesa.

VI – Só após a caracterização da natureza do ente colectivo Cruz Vermelha Portuguesa e do conceito de funcionário para efeitos penais, é que pode ter lugar um correcto tratamento subsuntivo; a afirmar-se a indiciação de presença do crime de peculato, a questão da ilegitimidade não se coloca; caso assim não aconteça, inverificado aquele crime, falecerá legitimidade ao Ministério Público.

VII – O CPP estabelece uma distinção entre meios de prova e meios de obtenção da prova (epígrafes dos Títulos II e III, respectivamente, do Livro III – arts. 128.º e ss. e arts 171.º e ss.). Os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fontes do convencimento do juiz; são elementos que o juiz pode usar de modo imediato para fundamentar a sua decisão. Os meios de obtenção de prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova.

VIII – No processo penal vigora o princípio da legalidade dos meios de prova. A doutrina distingue entre regras de produção da prova e proibições de prova. As primeiras têm por objectivo disciplinar o modo e o processo de obtenção da prova, não determinando, se infringidas, a proibição de valoração do material probatório. As proibições de prova dão lugar a provas nulas – artigo 38.º, n.º 2, da CRP. A lei portuguesa proíbe as provas fundadas na violação da integridade física e moral do agente e as provas que violem ilicitamente a privacidade.

IX – Não podem ser aproveitados, não podem servir em juízo os actos e as diligências probatórias realizadas em sede de inquérito, que representem, directa ou indirectamente, uma violação do segredo profissional do advogado, assim como não podem ser valorados em tribunal meios enganosos de obtenção de prova, como o daquele que instiga ou que determina outrem à prática de um comportamento delituoso.

X – A proibição de valoração de provas ilícitas suscita dificuldades sempre que implique o problema do «efeito à distância» ou do «fruto de prova proibida», mas a ponderação a efectuar caso a caso das provas subsequentes não deve neutralizar a regra constitucional, tornando legítimas «provas proibidas» (cfr. AcTC n.º 407/97).

XI – “As proibições de prova não são uma subespécie de nulidade. São, isso sim, uma espécie de invalidade, tal como o são as nulidades. Esse é o seu verdadeiro referente comum”.

XII – A afirmação da autonomia das proibições de prova em relação às nulidades e a destrinça entre métodos, absoluta e relativamente proibidos, estava já presente no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Fevereiro de 1995, proferido no processo n.º 47.084, publicado in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 194.

XIII – A utilização de provas proibidas que tenham servido de fundamento à condenação pode constituir, a partir da revisão do CPP, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, fundamento do recurso extraordinário de revisão, conforme o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

XIV – O segredo profissional mostra-se inerente, não ao próprio advogado em si, mas à actividade desenvolvida por este profissional da Justiça, o que significa que nem todos os factos transmitidos ou conhecidos pelo advogado estão a coberto do dever de confidencialidade previsto pelo artigo 87.º, n.º 1, do EOA, mas simplesmente aqueles que sejam relativos ao exercício desta actividade profissional.

XV – Só estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional (ou, de acordo, com os termos da própria lei, “os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções”), o que leva a excluir do âmbito de protecção desta norma tudo aquilo que é comunicado ao advogado, mas que não respeite a actos próprios da advocacia, ou seja, todos os acontecimentos da vida real que não se prendam com este desempenho profissional, mesmo que cheguem ao conhecimento do advogado no seu local de trabalho.

XVI – O segredo profissional do advogado, à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa tutelar, em primeira linha, as relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão, que não são postas em crise quando não estão em causa factos relacionadas com o estrito exercício da advocacia.

XVII – O EOA, muito em particular, os artigos 61.º a 63.º, em conjugação com a Lei n.º 49/2004, de 24-08, definem o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita. Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro.

XVIII – A intervenção em sede de inquérito do advogado R – o qual denunciou a um Inspector da Polícia Judiciária os factos que deram origem ao inquérito, de que teve conhecimento em virtude de o escritório ser, também seu, à data da prática dos factos, e que relatou conversas que ouviu no escritório e que fotocopiou documentos existentes no mesmo escritório – em nada belisca o disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA, na medida em que, os factos, os documentos e as diligências em referência em nada se relacionam com assuntos profissionais do Advogado. Não está em causa uma relação advogado-cliente, uma actividade no contexto de uma prestação de serviços, de um mandato. Não estão em causa relatos de factos revelados por cliente que tenham sido transmitidos por cliente/consulente. Não estão em causa informações sigilosas recolhidas/transmitidas no pressuposto da confidencialidade. Sobre o que debitou, o Advogado não era um “confidente necessário”.

XIX – Estes factos em nada se relacionam com o exercício da advocacia; as imputadas condutas não se mostram minimamente atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, não traduzem a prática de qualquer acto próprio do advogado, pelo que não se pode sustentar, de modo algum, a violação do segredo profissional do advogado R. Para além do local (escritório de Advogados) e dos intervenientes nos factos em apreciação (Advogados), mais nenhum outro elemento se relaciona directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do Advogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico. Nem tão pouco existe qualquer relação de confiança que se prenda com o exercício de funções de representação forense ou negocial.

XX – Todos os factos atinentes a um acordo para a execução de actos tipicamente integrantes do múnus da magistratura judicial (muito em particular, o estudo, a preparação, a pesquisa e a elaboração de acórdãos ou de projectos de acórdãos, no âmbito de processos judiciais, que se encontram pendentes para apreciação, no caso, em matéria cível, em fase de recurso, num dos tribunais da Relação), ainda que praticados por advogado(s) e no seu escritório, não estão cobertos pelo segredo profissional consignado pelo disposto no artigo 87.º, n.ºs 1, 2, 3 e 7, do EOA.

XXI – Não compete à advocacia a execução das tarefas que se mostram descritas na acusação, muito em particular, a preparação e a elaboração de projectos de acórdãos a proferir por um tribunal de recurso, o que inculca o exercício de alguma proximidade que não deveria existir, colocando em causa a incontornável e indefectível independência do juiz. Concluiu-se que a testemunha de acusação – Advogado R – não incorreu em violação do segredo profissional de advogado por ter colaborado com a investigação durante a fase processual de inquérito, pelo que os actos praticados por este e as declarações prestadas pelo Advogado R, bem como, a jusante, noutro bem diferente contexto, as declarações prestadas pela Advogada J, podem fazer prova em juízo.

XXII – A figura do agente infiltrado não se confunde com a do agente provocador, uma e outra figuras que não constituem modos sinónimos de autoria mediata/comparticipação na prática de um comportamento delituoso por parte de sujeito (órgão de polícia criminal ou terceiro, sob supervisão daquele) que se predisponha a colaborar com a investigação. A intervenção do agente provocador em processo penal é rejeitada, de modo unânime, pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, por consubstanciar um meio enganoso de obtenção de prova (e, como tal, proibido, à luz do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 126.º do CPP, na modalidade de “perturbação da liberdade de vontade e de decisão através da utilização de meios enganosos”), ao passo que as acções encobertas são legalmente admissíveis, uma vez observadas as condições estabelecidas pela Lei 101/2001, de 25 de Agosto, que regula o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.

XXIII – O Supremo Tribunal Justiça tem procurado distinguir as situações de provocação e o seu relevo em matéria de proibição de prova e precisar os traços distintivos entre o agente provocador e o agente infiltrado, praticamente sempre em casos de tráfico de estupefacientes. Mais raramente, em casos de lenocínio, tentativa de passagem de moeda falsa e corrupção passiva.

XXIV – A jurisprudência do STJ tem vindo a entender, de modo pacífico, que o recurso à figura do agente(s) provocador(es) consubstancia um método proibido de obtenção de prova, na medida em que esta prova é obtida mediante meios enganosos, ou seja, em que os suspeitos (ou arguidos) da investigação criminal, de modo astucioso, são chamados a executar e a participar em actos ilícitos, resultantes da própria iniciativa do agente provocador, que se apresenta com uma identidade falsa ou fictícia e/ou que não deixa conhecer essa sua qualidade, com a finalidade de os incriminar e de recolher provas que atestem a sua culpabilidade em juízo.

XXV – A testemunha de acusação – Advogado R – trabalhava, desde há vários anos, no escritório da advogada arguida, o que fez, dando a conhecer a sua verdadeira identidade, até que a dado momento, de forma ocasional, tomou conhecimento dos factos, que mais tarde decidiu transmitir às autoridades de investigação criminal. Esta testemunha não se insinuou nem se inseriu nesse escritório de advocacia, com identidade fictícia e com actuação concertada com as autoridades policiais ou judiciárias, por forma a ganhar a confiança das duas arguidas e com o intuito de proceder à recolha de informações, de indícios ou de elementos de prova, por existirem suspeitas de que nesse local se desenvolvia a prática de comportamentos delituosos, muito menos ainda que tenha tido um papel activo, que tenha sido ele a incentivar a prática dos crimes de peculato imputados em co-autoria às duas arguidas.

XXVI – O Advogado R não agiu como agente provocador, pois o processo de elaboração de projectos de acórdãos já estava em marcha, em nada tendo contribuído para a sua génese ou mesmo continuação, pelo que, não existem fundamentos para que o STJ decrete que o MP fez uso de “prova proibida” ou que se verifica uma “nulidade da prova oferecida na acusação”.

XXVII – Analisada toda a prova documental, conclui-se apresentarem-se como cruciais – no plano da averiguação da existência dos indícios a nível fáctico – os documentos apreendidos nas buscas, como os projectos de acórdãos, as folhas manuscritas, os trabalhos preparatórios, os e-mails, os dados extraídos de computadores. A prova testemunhal, adrede arrolada pela defesa, não tem a virtualidade de destruir, contrariar, infirmar, abalar, minimizar ou sequer beliscar a força probatória dos e-mails, que traduzem a revelação das comunicações que foram sendo estabelecidas entre a arguida Advogada e a arguida Juíza e a advogada J, as intervenientes neste exercício de que resultou a formulação de projectos de acórdãos para a arguida Juíza e o pagamento destes serviços pela Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa.

XXVIII – Os E-mails constantes dos autos, atendendo a que constituem veículo de conteúdo informacional, tratando-se de uma comunicação à distância levada a cabo por meios informáticos, revestem-se de primordial importância por exporem o que, em determinado contexto temporal, rigorosamente marcado, incluindo dia de semana, hora, minuto, segundo, umas pessoas transmitiram às outras.

XXIX – O contrato de avença jurídica pode ser definido, em termos básicos, como um contrato de prestação de sucessivos serviços jurídicos (cfr. artigo 1154.º do Código Civil), mediante uma remuneração mensal certa.

XXX – Este tipo de contrato é usual, sobretudo, entre empresas e advogados e visa, no fundo, permitir que estas entidades tenham um acompanhamento jurídico contínuo, dentro de várias áreas do Direito e tendo em conta as necessidades específicas de cada entidade.

XXXI – A avença jurídica é uma das modalidades mais usuais na relação entre os advogados e empresas/empresários, uma vez que tem a virtualidade de facilitar o desenvolvimento da relação de confiança e trabalho entre ambos e permitir uma poupança para ambas as partes (englobando nos serviços a prestar, consulta jurídica; celebração de contratos (nacionais e internacionais); cobranças; pré-contencioso e contencioso; participação em reuniões).

XXXII – No crime de peculato, a definição, ao nível do destinatário da previsão normativa, o que é dizer, da conformação do sujeito activo – o funcionário é/o funcionário será – o que a lei ordinária, a cada momento histórico, designa(rá) como tal, pois estamos perante uma figura em permanente mutação, mas por outro lado, com a constante característica, não de restrição, mas de adição, sempre no sentido do alargamento do campo da destinação da norma, do recrutamento de novos actores, ou seja, de novos autores, de novos sujeitos activos, como se alcança das reformulações punitivas aditivas de 2001 (Lei n.º 108/2001, de 28-11), de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04-09) e de 2010 (Lei n.º 32/2010, de 02-09), no que toca ao artigo 386.º do CP.

XXXIII – No crime de peculato o específico conceito de sujeito activo começou por ser o “empregado público”, com definição desde logo rigorosa, que depois evoluiu para o conceito de “funcionário”, este com estrutura cada vez mais alargada, abrangente, expansiva, e sobretudo, compreensiva. Desde cedo a jurisprudência assumiu a necessidade de afirmar uma maior amplitude da noção de funcionário, abrangendo uma fórmula mais lata.

XXXIV – O artigo 386.º do Código Penal (originário de 1982, revisto em 1995) foi alterado por três vezes, sempre numa lógica de acrescentamento, alargamento, de adição, extensão das noções precedentes. O intróito do n.º 1 e alíneas a), b) e d) e o n.º 4 actual do artigo 386.º do CP correspondem ao artigo 437.º do CP de 1982, com ligeiras alterações introduzidas em 1995. O n.º 2 do art. 386.º foi introduzido em 1995, tendo por fonte o DL 371/83, de 6 de Outubro. O n.º 3 e alíneas a), b) e c) foram alteradas em 2001. A alínea d) do n.º 3 foi aditada em 2007. E a al. c) do n.º 1 foi aditada em 2010.

XXXV – A Cruz Vermelha Portuguesa é uma associação de utilidade pública, que prossegue fins altruístas, sendo o seu Presidente nomeado pelo Governo, no caso por Despacho da Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Defesa Nacional.

XXXVI – A Cruz Vermelha Portuguesa é uma instituição integrada na figura das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa “especiais”, prosseguindo fins de interesse público, tarefas públicas, missão de interesse público, estando submetida a um regime fiscalizador de tutela, de ingerência pública, governativa.

XXXVII – Os factos cuja prática pelas arguidas vem fortemente indiciada preenchem os elementos essencialmente constitutivos do tipo legal de crime de peculato, p. p. pelo artigo 375.º do Código Penal, pois que para pagamento de resumos e projectos de acórdãos destinados a processos do Tribunal da Relação distribuídos à arguida Juíza – concomitantemente Juíza Desembargadora naquele Tribunal e Presidente da Delegação P e M da Cruz Vermelha Portuguesa – foi apropriada a quantia de X, pertencente à Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa, tendo sido entregue a quantia de Y à arguida Advogada, concomitantemente Vice-presidente da Delegação de M da Cruz Vermelha Portuguesa, e a quantia de YY à Advogada J.

XXXVIII – A caracterização da Cruz Vermelha Portuguesa como pessoa colectiva de direito privado de utilidade pública administrativa especial, o exercício de funções públicas e a tutela governativa conduzem à configuração da arguida Advogada e arguida Juíza como preenchendo o conceito de funcionário para efeitos da lei penal, nos termos do art. 386.º, n.º 1, al. d), do CP.

XXXIX – No que tange à arguida Advogada, a quem era imputada a prática de dois crimes de peculato, sendo o segundo por envolvimento directo na contratação da Advogada J para elaboração de projectos de acórdãos distribuídos à arguida Juíza, por verificada forte contra indiciação no que respeita à sua intervenção no que toca a tal contratação, ser-lhe-á imputado a prática de um só crime de peculato.

XL – A acusação imputa dois crimes de peculato à arguida Juíza por conduta relativa ao pagamento devido pela intervenção da arguida Advogada, ao abrigo de uma invocada avença jurídica e a outro pagamento ao abrigo de alegada assessoria jurídica por parte da Advogada J, pagamentos esses provenientes dos cofres da Delegação M da Cruz Vermelha Portuguesa.

XLI – A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem.

XLII – A conduta da arguida Juíza dada por fortemente indiciada tem de ser apreciada em função dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora e na consideração do escopo último pretendido pela arguida com a sua actuação. Estamos face a um crime pluriofensivo, havendo que atender ao bem jurídico protegido na norma, a saber, a probidade e fidelidade do funcionário e o dano no plano patrimonial.

XLIII – Facilmente se intui que se tivesse a arguida Advogada prosseguido o seu desempenho para além da data x a arguida Juíza não teria tido necessidade de contactar a Advogada J; o objectivo era apenas encontrar alguém que pudesse elaborar resumos e projectos de acórdãos, fosse A ou B, reunidos que fossem, é evidente, determinados pressupostos.

XLIV – Há uma renovação do propósito, mas a motivação é a mesma; no fundo quando se verifica a intervenção da Advogada J, já o bem jurídico, componente pessoal, estava violado; o que acresce será um grau de lesividade mais intenso, que poderá ser avaliado a nível de medida da pena, mas não como integrante de um outro crime autónomo.

XLV – Por outro lado, o acréscimo no plano patrimonial é evidente, pois que há uma outra quantia a somar, mas no fundo será uma questão de grau, alcançando-se um dano de maior amplitude na vertente da lesão patrimonial, a avaliar nos mesmos parâmetros. Considera-se assim preenchido um único crime de peculato.

Fonte: https://www.dgsi.pt

 

 

 




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