PROCESSO N.º 5836/16.8T9LSB-A.S1 Supremo Tribunal de Justiça
Data
11 de março de 2021
Descritores
Recurso de decisão contra jurisprudência fixada
Pressupostos
Matéria de facto
Matéria de direito
Identidade de factos
Oposição expressa
Inadmissibilidade
Sumário
I – A admissibilidade de recurso directo para o STJ, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, prevista no artigo 446.º, do CPP, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com outra que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.
II – Esta disposição está directamente ligada com o n.º 3, do art. 445.º, do CPP. Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do art. 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.
III – Da conjugação dos arts. 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, decorre que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação, ser o de recurso ordinário.
IV – A possibilidade de interpor este recurso extraordinário apenas se admite quando estiverem esgotados todos os recursos ordinários, seja por que a eles se lançou mão sem êxito, seja por que, não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, nomeadamente, por trânsito em julgado da decisão recorrida. E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e de natureza substancial.
V – Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente – que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao MP – e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário.
VI – A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no art. 445.°, n.° 3, que “a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência”.
VII – O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.
VIII – Atento o despacho recorrido verifica-se que o mesmo foi proferido no início da audiência de julgamento, sem ter sido produzida qualquer prova, baseando-se apenas na matéria de facto elencada na acusação. Ou seja, não houve qualquer alteração dos factos. A arguida vinha apenas acusada pela prática de 1 crime de abuso de poder, tendo sido considerado que estavam em causa 32 crimes de abuso de poder, tal correspondeu apenas a uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos factos. Apenas constituem alteração substancial dos factos aqueles casos em que é imputado ao arguido um crime diverso, ou quando haja uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [artigo 1.º, al. f), do CPP]. Ora, no presente caso o crime foi o mesmo, com a diferença de que os factos foram classificados como integrando 32 crimes de abuso de poder, em vez de um único crime de abuso de poder.
IX – O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 229/2016, já considerou ser admissível, através da alteração da qualificação jurídica dos factos (sem que os factos tout court sejam alterados) o aumento (relativamente à acusação) das infrações imputadas ao arguido.
X – Apesar de o despacho recorrido, ter decidido em desrespeito ao que se mostra decidido no acórdão de fixação n.º 11/2013, verifica-se, que não manifestou a sua discordância expressa, face a tal acórdão de fixação, contestando-o, ou negando a sua validade.
XI – Motivo que nos leva a entender que não é admissível o presente recurso contra jurisprudência fixada.
XII – Com efeito, nos casos em que a decisão não expressa qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, não negando a sua validade, mas não a aplicando, quer por desconhecimento, ou mau entendimento, estamos perante uma errada aplicação do direito, que pode ser impugnada pelas vias normais, no caso de estas ainda o permitirem, mas não é possível interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada.
XIII – O despacho recorrido não fez qualquer alusão à jurisprudência fixada no AFJ n.º 11/2013, nem a aplicou, nem a questionou, não negou a sua validade, nem afirmou qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, pura e simplesmente nada disse em aparente desconhecimento. Pelo que, analisando o caso dos autos, não podemos deixar de concluir que, uma vez que na decisão recorrida, o tribunal a quo, não expressou oposição à jurisprudência fixada pelo STJ através do acórdão n.º 11/2013, tendo tão só e apenas deixado de o aplicar, não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada e, assim sendo, não estão reunidos todos os pressupostos para admissão do presente recurso.
XIV – Razão que leva à rejeição do recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, nos termos conjugados dos arts. 440.º, n.º 4, e 441.º, n.º 1, correspondentemente aplicáveis ao caso, por força do art. 446.º, n.º 1.
Fonte: https://www.dgsi.pt